27 de outubro de 2011

Está um pouco nublado.

 
 




‘Eu disse a ele que me sentia uma garota cega na janela. Acho que eu sempre vou querer vê-lo de longe, mas eu não vou poder olhar porque isso me doeria muito. E eu sempre vou desejar o melhor a ele, e eu não pretendo amá-lo para sempre, mas por enquanto eu o amo, e por enquanto eu observo de longe sem ver.' K.T.
É que, bem, eu nem mesmo queria, e disse isso a ele... Seria tão mais fácil culpá-lo pela insistência, do modo como me culpo agora por ter cedido. Estava vazia, incompleta, sim, mas norteada, direcionada; ele não tinha nada que...
O que acontece é que agora não adianta mais, estou cega e presa. Presa dentro dos limites possíveis que não me permitem agir e comandar de acordo com a minha vontade; e ainda que ele fosse mal, que fosse hipócrita - eu poderia mandar prendê-lo. Mas ele não é ! O que torna todo o mal já feito em erros e ‘impretensões’ de minha parte. Sinto dizer-lhe, mas mulheres jamais podem ser culpadas.
Por Deus, eu havia me exorcizado tantas vezes por pecados alheios que nem me é possível contabilizá-los novamente; houve tanta dor lasciva e mal formada de amor adolescente, porém, agora eu sou mulher e então dói mais. Dói como fracasso pessoal e perda financeira. Coração não se refaz assim do zero, então vou lhe contar a história da menina que morava dentro dele, quem sabe assim acabo reconstruindo-o:
‘Ela havia nascido um pouco cega, não havia muito espaço para o próprio crescimento, o lugar era bastante apertado e ao invés de se expandir, regredia cada vez mais, se apertando em dor de medo, e a menina ia sofrendo. Como era pequenina, na primeira expansão já se foi correndo, ingênua, ia crescendo e enxergando cada vez mais – os olhos, mal acostumados, iam míopes e ela acabou sofrendo grande queda, machucou-se, doeu muito. O lugar de nascimento regrediu um pouco, mas não havia muito que fazer: a primeira e grande expansão é para sempre, algumas paredes se quebram, sempre dói, mas é para sempre. Então, a menina pequenina se aquietou, viveu sua nova vida, sob as perspectivas de sua nova expansão, reconstruindo e construindo tudo aos poucos, focada. Foco também incide em um pouco de cegueira, é como olhar sem ver, deste modo, porém, as coisas poderiam continuar, o que se encaixa dentro do conceito de bom e permitido.
Permissão?! Não, nunca houve permissão, esse lugar onde a pequenina morava vivia meio aberto e meio fechado, em uma convulsão de sístoles e diástoles, ao que ela sobrevivia... A última vez que aconteceu tornou as coisas piores, ela, já calejada, correu com maior obstinação, no puro risco de se perder, mas coexistindo com a fé, o que por si só era a segurança. Correu tanto, mas por pouco tempo, dessa vez nem caiu, estancaram-na; não lhe deixaram continuar o caminho que seus pés queriam traçar. O caminho veio e ela o havia escolhido, estava pronta, mas desta vez não lhe permitiram.
Ela voltou sozinha, desta vez, vagarosamente, com olhar baixo, para o chão. As janelas do lugar se embaçaram todas, não havia como comprimir. Ela queria continuar olhando para o caminho que havia escolhido que não mais lhe pertencia, então ela não poderia enxergar. Nunca podemos enxergar aquilo que não é nosso, os olhos querem capturar, como fotografias, e fica como algo inexistente, esperança esfumaçada. Então a menina ficou cega de vez, cega de ‘inesperança’, cega de não pertencer. Continua vivendo, sim, não se sabe até quando... Ela guardou o caminho em algum lugar, mesmo sem enxergá-lo, da próxima vez será necessário desmatar muito mais e gerar uma nova trilha, a cada vez ela aprende a enxergar novamente, mesmo cega, enxerga com seu próprio corpo e vontade, afinal, depois de algumas vezes não precisamos mais dos olhos.’
- Poderia parar no próximo ponto, por favor? Está um pouco nublado, daqui eu não posso enxergar muito bem...



Imagem: Google.

20 de outubro de 2011

Insaciável o bastante para provar das estrelas do infinito...






Tenho fome!

18 de outubro de 2011

"Mineirinho" conto de Clarice Lispector (Ouvindo Livro)

Há momentos...


Há momentos na vida em que sentimos tanto
a falta de alguém que o que mais queremos
é tirar esta pessoa de nossos sonhos
e abraçá-la.

Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que se quer.

Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.

As pessoas mais felizes
não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor
das oportunidades que aparecem
em seus caminhos.

A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem
a importância das pessoas que passam por suas vidas.

O futuro mais brilhante
é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida
quando perdoar os erros
e as decepções do passado.

A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar
duram uma eternidade.
A vida não é de se brincar
porque um belo dia se morre.

Acaso...


"Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho, pois cada pessoa é única
e nenhuma substitui outra.
Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho, mas não vai só
nem nos deixa sós.
Leva um pouco de nós mesmos,
deixa um pouco de si mesmo.
Há os que levam muito,
mas há os que não levam nada.
Essa é a maior responsabilidade de nossa vida,
e a prova de que duas almas
não se encontram ao acaso. "
 

17 de outubro de 2011

O bolo de Festa...

 
 
 


Ela chegou em casa e descalçou os sapatos. Foi até o aparelho de som e colocou o Cd que nunca ouvia - era triste demais. Deitou-se na cama e fechou os olhos, brevemente...

As pálpebras tornaram-se pétalas, ela começou a flutuar em um rio cristalino de planície, não havia som algum... Passara muito tempo flutuando... Quando, de repente, afundou, sem se afogar, naquele desespero resignado de perder-se; sem dor, indo mais e mais fundo.
O Cd acabou.

Levantou-se, mecânica - não era dor o que sentia, era uma espécie de constrangimento por não pertencer - não desejava se libertar, a grande verdade é que não era direito seu. Não era importante, e para os anônimos o destino é sempre comum.

Caminhou pela casa em passos leves, sem intensão. A crueldade só se enquadra quando existe aflição e dor; dor não havia. Piscou vagarosamente e procurou não pensar. Ligou o Cd novamente e foi para a cozinha - ladrilhos da cor laranja que ela mesma escolhera para dar vida ao ambiente - resolveu preparar um bolo, branco, de festa.

Preparou-o, sem ímpeto algum de cozinheira, por mais mãe e esposa que fosse. Colocara o mínimo de açúcar possível, somente o cheiro deveria ser doce. Continuava mecânica. Eram 16 horas e 5 minutos.

Regou as plantas e abriu as portas da varanda - fora o apartamento dos sonhos, quitado no último ano - entrava uma brisa. Sentiu frio.

O Cd terminou novamente, ela desligou o som. O bolo estava assado. Decorou-o e o colocou no refrigerador. Assustou-se um pouco, nunca pertencera à solidão, mas naquele momento era o seu único pertence. Ela se sentiu ausente em sua própria casa, respirava exausta. Apenas o silêncio era bom, foram 40 anos e ela não havia percebido isso.

Entrou no quarto, os chinelos, despreocupadamente, estavam virados para baixo. Adormeceu no silêncio - um longo tempo...

Abriu os olhos, a claridade lhe cegou temporariamente. Ouviu-se um apito agudo e pausado, que manteve certa constante. As pálpebras tornaram-se pétalas e ela submergiu profundamente.

Nunca mais acordou, o bolo de festa nunca foi comido. 
 
 
 

Imagem: Google.com

11 de outubro de 2011

Acertando...

Por: Carla Reichert





O grande negócio é o seguinte,
você tem que aprender a conviver sabe
e respeitar o jeito de ser das pessoas
Há gente que se esconde por raiva,
outros por orgulho.
É que a gente já sabe que tem gente que não consegue descer do pedestal
nunca, mas nunquinha mesmo.
Assim nunca funciona, pois umbigo todo mundo tem,
mas nem por isso o mundo gira em torno só do seu, do nosso, do vizinho...
Tem gente que procura assim só quando precisa...
Claro, ninguém tem que ficar no seu pé o tempo todo...
mas é tão nítido que algumas pessoas só te acham quando querem
só te procuram quando você é a última opção e quem sabe a única.
Claro que elas, as pessoas nunca vão te dizer isso...
Mas sinceramente é que todo mundo tem uma pessoa assim por perto.
Mas nem tudo é tão radical, essas pessoas são muito bacanas, são sim...
é...também quando precisam da sua mão.
Mas tem dias que valha-me, elas te botam para escanteio, te deixam na reserva,
no banco e ainda xingam o juiz...você.
Pessoas, ha seres tão humanos.
Acho que ando vivendo dias de aprendizado.
Ando aprendendo que 2+2 muitas vezes não é igual a 4.
Ando me perdoando, me desculpando...
Eu não sou a tábua da salvação, mas também estou longe de ser o capacho.
Ando equilibrando e acho que tem dado certo.
Ao menos comigo, ando em paz.
É o grande barato da coisa é esse, achar a paz e ela começa dentro da gente.





Uma virtude percorre minhas veias, a poesia se revela no meu tato, tenho muito pra contar... Tenho muito pra viver!




...Já lhe contei muito sobre minha ausência, e deve ser por isso que me descubro em um derramar de água só, já que não tenho muito pra contar, vejo-me, diz a língua.
O teu rio é tão nosso... a gente sempre se molha o suficiente!








Nossa amizade parece uma brincadeira, e no balanço do sorriso de tua saia de renda a minha pequenez se esconde em um argumento atroz. Renova-se. A dormência da virtude formiga meu corpo. Se for licito aprovar meu bem querer, que assim o seja. O meu peito esclarece a mim mesmo que sou rico e essa riqueza que me persegue é fruto de uma simplicidade castigada pela ausência de pão, a falta de chuva, a falta de um amor correspondido...

8 de outubro de 2011

Melancolias ou Nostalgias

Por: Carla Reichert



Ah o amor ausente,
onde ficaram as emoções?
Será que nunca mais serão sentidas?
Não as emoções mornas, que não são verdadeiras...
mas forçadas.
Frutos de amores inventados para não ver mais passar o tempo
e a dor de uma ausência conformada.
Ah, lamentam os enamorados que já não suportam mais lembranças doces,
pois estas foram ultrapassadas pelas confusões de um triste e necessário fim.
Hoje colocam-se nas janelas olhando horizontes, entre mares e montanhas...
e somente lá, na linha deste horizonte conseguem digerir lembranças.
Longe e eterno.
Todos estes sentimentos guardados em compartimentos separados.
Sorrisos e olhares, sempre eles, estarão eternamente na primeira imagem,
a única e que nunca finda.
Somente por esse quadro, fotografado na memória de tudo que vale ainda relembrar.
Não é pensado, somente surge ao ler belas poesias.
Depois fecha-se o compartimento e nada mais pensa.
Volta para a redoma de cristal, este ainda intacto, das memórias boas.
Os cristais quebrados foram recolhidos, para que permanecessem vivas
a época de um amor, que mesmo em turbilhão sempre foi exato na sua forma.
Não passam de visitas ao passado, pois memórias não se apagam.
Pois onde mora a melancolia, uma certa nostalgia  sem saudades alguma.
Apenas emoções, um carrocel delas. Nada causam, somente uma dose notívaga de recordações,
que para nada servem, são somente recordações.
Elas estão lá, vão permanecer lá, até que a criatura personagem da estória continue viva.
Pois este amor já é morto.
E não há que ter medo da morte, faz parte da vida. Tudo que nasce, cresce, acaba virando cinzas.
Não foi tempo perdido, foi aprendizado de um tempo marcado, com isto só se pode mesmo aprender que amores não necessariamente ficarão juntos. 
Eles moram em pessoas e elas são cheias de defeitos, mesmo que algumas jamais admitam sua parte de erros. Ainda que continuem com as mesmas teclas do piano quebrado, que nunca foi consertado, que diz que o desafino é somente do violão. 
Amor desafiador que nutre-se de fotos absurdas, clicadas pelo olhar da algoz da tua alma.
E que na era dos tempos modernos, usa-se das imagens do olhar que somente a muda musa algoz captou.
Muda e nem um pouco perplexa ela não assiste mais a tais banalidades de vinganças baratas.
Não passam de restos, as migalhas que os ex enamorados decidem noticiar em mundos virtuais, quase nunca tão reais assim. 




 
“Creio que será permitido guardar uma leve tristeza e também uma boa lembrança; que não será proibido confessar que as vezes se tem saudades, nem odioso dizer que a separação, ao mesmo tempo, traz-nos um inexplicável sentimento de alívio e de sossego, mas também uma indefinível dor. É que houve momentos perfeitos, que passaram, mas não se perderam por que ficaram em nossas vidas
e a lembrança deles nos faz sentir maiores, fazendo com que nossa solidão seja menos infeliz.” 

[William Shakespeare]

4 de outubro de 2011

Rios sem discurso



Por: João Cabral de Melo Neto



Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase a frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.
 




1 de outubro de 2011

Os bonecos de barro...




POR:  CLARICE LISPECTOR
 
 

O que ela amava acima de tudo era fazer bonecos de barro — o que ninguém lhe ensinara. — Trabalhava numa pequena calçada de cimento em sombra, junto à última janela do porão. Quando queria com muita força ia pela estrada até ao rio. Numa de suas margens, escalável embora escorregadia, achava-se o melhor barro que alguém poderia desejar: branco, maleável, pastoso: frio. Só em pegá-lo, em sentir sua frescura delicada, alegrezinha e cega, aqueles pedaços timidamente vivos, o coração da pessoa se enternecia úmido quase ridículo. Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida e lavada — na lata presa à cintura iam se reunindo os trechos amorfos. O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços e ela mexia os dedos úmidos com excitação e clareza. As mãos livres, ela então cuidadosamente galgava a margem até a extensão plana . No pequeno pátio de cimento depunha a sua riqueza. Misturava o barro à água, as pálpebras frementes de atenção — concentrada, o corpo à escuta, ela podia obter uma porção exata de barro e de água numa sabedoria que nascia naquele mesmo instante, fresca e progressivamente criada. Conseguia uma matéria clara. e tenra de onde se poderia modelar um mundo.
Como, como explicar o milagre... Ela se amedrontava pensativa. Nada dizia, não se movia, mas interiormente sem nenhuma palavra repetia: Eu não sou nada, não tenho orgulho, tudo me pode acontecer; se quiser, me impedirá de fazer a massa de barro; se quiser, pode me pisar, me estragar tudo; eu sei que não sou nada. Era menos que uma visão, era uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe permita conseguir tanto barro e água e diante de quem ela devia humilhar-se com seriedade . Ela lhe agradecia com uma alegria difícil, frágil e tensa; sentia em alguma coisa como o que não se vê de olhos fechados. Mas o que não se vê de olhos fechados tem uma existência e uma força, como o escuro, como a ausência — compreendia-se ela, assentindo feroz e muda com a cabeça. Mas nada sabia de si, passaria inocente e distraída pela sua realidade sem reconhecê-la; como uma criança, como uma pessoa.

Depois de obtida a matéria, numa queda de cansaço ela poderia perder a vontade de fazer bonecos. Então ia vivendo para a frente como uma menina.

Um dia, porém, sentia seu corpo aberto e fino, e no fundo uma serenidade que não se podia conter, ora se desconhecendo, ora respirando trêmula de alegria, as coisas incompletas. Ela mesma insone como luz — esgazeada, fugaz, vazia, mas no íntimo um ardor que era vontade de guiar-se a uma só coisa, um interesse que fazia o coração acelerar-se sem ritmo... de súbito, como era vago viver. Tudo isso também poderia passar, a noite caindo repentinamente, a escuridão fresca sobre o dia morno.

Mas às vezes ela se lembrava do barro molhado, corria alegre e assustada para o pátio: mergulhava os dedos naquela mistura fria, muda e constante como uma espera; amassava, amassava, aos poucas ia extraindo formas. Fazia crianças, cavalos, uma mãe com um filho, uma mãe sozinha, uma menina fazendo coisas de barro, um menino descansando, uma menina contente, uma menina vendo se ia chover, uma flor, um cometa de cauda salpicada de areia lavada e faiscante, uma flor murcha com sol por cima, o cemitério do Brejo Alto, uma moça olhando... Muito mais, muito mais. Pequenas formas que nada significavam, mas que eram na realidade misteriosas e calmas. Às vezes alta como uma árvore alta, mas não eram árvores, m:to eram nada...Ás vezes um pequeno objeto de forma quase estrelada, mas sério e cansado como uma pessoa. Um trabalho que jamais acabaria, isso era o que de mais bonito e atento ela já soubera. Pois se ela podia fazer o que existia e o que não existia!...

Depois de prontos, os bonecos eram colocados ao sol. Ninguém lhe ensinara, mas ela os depositava nas manchas de sol no chão, manchas sem vento nem ardor. O barro secava mansamente, conservava o tom claro, não enrugava, não rachava. mesmo quando seco parecia delicado, evanescente e úmido. E ela própria podia confundi-lo com o barro pastoso. As figurinhas assim, pareciam rápidas, quase como se fossem se desmanchar — e isso era como se elas fossem se movimentar. Olhava para o boneco imóvel e mudo. Por amor ou apenas prosseguindo o trabalho ela fechava os olhos e se concentrava numa força viva e luminosa, da qualidade do perigo e da esperança, numa força de sede que lhe percorria o corpo celeremente com um impulso que se destinava à figura. Quando, enfim, se abandonava, seu fresco e cansado bem-estar vinha de que ela podia enviar, embora não soubesse o que, talvez. Sim ela às vezes possuía um gosto dentro do corpo, um gosto alto e angustiante que tremia entre a força e o cansaço — era um pensamento como sons ouvidos, uma flor no coração: Antes que ele se dissolvesse, maciamente rápido, no seu ar interior, para sempre fugitivo, ela tocava com os dedos num objeto, entregando-o. E, quando queria dizer algo que vinha fino, obscuro e liso — e isso poderia ser perigoso — ela encostava um dedo apenas, um dedo pálido, polido e transparente, um dedo trêmulo de direção. No mais agudo e doído do seu sentimento ela pensava: Sou feliz. Na verdade, ela o era nesse instante, e se em vez de pensar: Sou feliz, procurava o futuro, era porque, obscuramente, escolhia um movimento para a frente que servisse de forma à sua sensação.


Assim juntara uma procissão de coisas miúdas. Quedavam-se quase despercebidas no seu quarto. Eram bonecos magrinhos e altos como ela mesma. Minuciosos, ligeiramente desproporcionados, alegres, um pouco perplexos — às vezes, subitamente, pareciam um homem coxo rindo. Mesmo suas figurinhas mais suaves tinham uma imobilidade atenta como a de um santo. E pareciam inclinar-se, para quem as olhava, também como os santos. Virgínia podia fitá-las uma manhã inteira, que seu amor e sua surpresa não diminuiriam.
— Bonito... bonito como uma coisinha molhada, dizia ela excedendo-se num ímpeto imperceptível e doce.

Ela observava: mesmo bem acabados, eles eram toscos como se pudessem ainda ser trabalhados. Mas vagamente, ela pensava que nem ela nem ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de nascimento . Era como se eles só pudessem se aperfeiçoar por si mesmos, se isso fosse possível.

As dificuldades surgiam como uma vida que vai crescendo. Seus bonecos, pelo efeito do barro claro, eram pálidos. Se ela queria sombreá-los não o conseguia com o auxílio da cor, e por força dessa deficiência aprendeu a lhes dar sombra ainda por meio de forma. Depois inventou uma liberdade: com uma folhinha seca sob um fino traço de barro conseguia um vago colorido, triste assustada quase inteiramente morto. Misturando barro à terra, obtinha ainda outro material menos plástico, porém mais severo e solene. MAS COMO FAZER O CÉU? Nem começar podia! Não queria nuvens — o que poderia obter, pelo menos grosseiramente — mas o céu, o céu mesmo, com sua existência, cor solta, ausência de cor. Ela descobriu que precisava usar uma matéria mais leve que não pudesse sequer ser apalpada, sentida, talvez apenas vista, quem sabe! Compreendeu que isso ela conseguiria com tintas.

E às vezes numa queda, como se tudo se purificasse, ela se contentava em fazer uma superfície lisa, serena, unida, numa simplicidade fina e tranqüila.



O texto acima foi publicado na revista "Nordeste" (Ano XIII, nº 2, julho de 1960, Recife-PE) e consta do romance "O Lustre", publicado em 1946. Foi extraído de reprodução feita pela Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, produção editorial de Giordanus - São Paulo, maio de 2003, sendo mais uma colaboração de João Antônio Bührer e seus "Arquivos Implacáveis".
Não há identificação do autor das ilustrações, que serão talvez de Ladjane que, com Esmaragdo Marroquim, assume a direção da revista. Declinam-se também M.Bandeira, José Cláudio e Karl Plattner como ilustradores do exemplar utilizado.