Pois
que a freira estava com os dedos todos envoltos em esparadrapo, ao que
me confidenciou: fruto de uma suposta alergia nos ossos. - ‘Pois você
consegue acreditar que o médico ainda queria operar-me os olhos com
catarata?! Ainda mais com esta alergia. ’ – e eu que fiquei sem entender
a relação entre uma coisa e outra, os ossos e os olhos. E ela que quase
não me enxergava. Era a irmã Lorença - ‘poucas têm esse nome’,
demonstrando- se - me única. E eu que há alguns minutos lia 'O Príncipe', de Maquiavel, dedicado a Lorenzzo. Fiz questão de lhe contar a coincidência!
Lorença
dedicara toda a sua vida ao convento, desde os 19. Foram 67 anos, de
modo que agora possuía 86, derrubando óculos e botões no chão – era a alergia que afetava os dedos.
E falava tão baixinho que eu sempre precisava tirar a alma do corpo
para poder ouvi-la. A minha vontade de ‘puxar conversa’ concretizara-se
justamente quando ela derrubou a lente de um óculos antigo (suponho que
fosse desastrada além do problema nos ossos)... Conversa vai, conversa
vem, estávamos em uma rodoviária e eu me preparava para o feriado e a
volta ao lar, cansado que estava da cidade grande e das mazelas do
mundo. Ela, toda indignada, além dos disparates do médico, que queria
operar-lhe, desacreditava de uma informação sobre os ônibus que certa
atendente lhe dera: - ‘Pois você acredita que ela disse não haver vagas
nos ônibus até o dia 18? Isso nunca aconteceu, esses ônibus foram sempre
vazios, jamais se encheriam do nada!’. Estive incerto novamente sobre o
tempo em que ela não utilizava daqueles ônibus. Viera do Espírito Santo
(uma coincidência metafórica) e fora viver em Santa Catarina, ‘uma
viagem que durou 11 dias’. Entendi como uma procissão.
Disse-lhe
que eu procurava acreditar nas pessoas e não questioná-las muito, assim
como não questionamos o Deus. Ela parou, pensativa: - ‘cada um do seu
modo!’. Contou-me então de um fato que considerava estranho: sua vontade
de nunca casar. Nunca quis casar aos 19, gostava dos rapazes, mas nunca
quis casar, então quis ser freira. Houve um rapaz: ‘porque naquele
tempo as coisas eram diferentes, ele ter falado com meu pai já era meio
caminho andado’; ‘eu não poderia dizer não, se ele quisesse, que fosse
lá em casa, mas eu não queria conversar, ficava mesmo era jogando
baralho com meus irmãos mais velhos!’. Lorença partiu o coração do moço e
foi embora de casa. Passaram-se 67 anos desde então.
A
idade em que ela não quis casar e coincidentemente (novamente) a minha
própria idade, onde procuro um amor. Confidenciei-lhe, inclusive minha
desesperança, de nunca encontrar alguém; de querer ter filhos; ter casa;
casar aos 30; amar e amar e amar. Ela achou bonito: ‘cada um do seu
modo!’. Perguntou meu nome: ‘Vou rezar, eu sempre rezo, é minha
obrigação!’. Logo em seguida disse que me esqueceria o nome: ‘mas só de
olhar sua feição, sim, me lembrarei do seu rosto e o Pai, sim, o Pai
saberá, e eu sei que dará tudo certo!’. Então agora eu sei que terei
sorte no amor!
Vou
rezar também por ela! Ainda que não por costume ou obrigação, vou rezar
para que sua ‘alergia nos ossos' sare e para que ela encontre médicos
‘mais sensatos’ (veja só!); também para que seja muito feliz, e para
que não se esqueça de pedir por mim e por meu amor, que não sei onde
está. Mas eu sei que ela vai se lembrar de mim: olhou fundo nos meus
olhos, ainda que pouco enxergasse.
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